Resenha: A Pequena Sereia

O ano de 2023 foi mágico para os amantes de cinema e séries, com a arte, mais uma vez, realizando sua missão de nos resgatar da bagunça que somos. E finalmente, após ser adiado por no mínimo dois anos, veio a versão mais aguardada da minha vida: o live-action de "A Pequena Sereia".
A expectativa foi atendida e o sonho se tornou realidade. No entanto, se para mim, e para parte do público, o ano foi um sonho, para o estúdio e alguns espectadores, nem tanto.

Foto: Reprodução

Dirigido pelo Rob Marshall ("Chicago" e "O Retorno de Mary Poppins") A Pequena Sereia dispensa apresentações. Quase todo mundo conhece a história da aventureira sereia Ariel, interpretada pela estreante Halle Bailey, que sonha com a vida humana e para realizar esse sonho dá a voz à bruxa do mar chamada Úrsula, interpretada pela Melissa McCarthy ("As Bem Armadas" e "Poderia Me Perdoar?"), que deseja, a qualquer custo, tomar o poder de Tritão, pai de Ariel, interpretado pelo ator Javier Bardem ("Onde Os Fracos Não Tem Vez" e "Mar Adentro").

Pra começar, o aspecto realista de "A Pequena Sereia" certamente foi um trabalho insano. Conceituar uma fauna marinha à serviço do canto e dança foi algo tão complexo que o diretor optou por um balé humano pra desenvolver melhor os movimentos, em geral, e a coreografia.
Como o diretor carrega a sua vivência teatral pulsando no peito, essa ideia engenhosa contribuiu positivamente com todo o processo complexo de pós-produção. E como de costume, Rob Marshall se preocupa muito com a transição das sequências e todas elas são realizadas com muita fluidez e elegância.

O que mais se falou sobre a produção de "A Pequena Sereia", sem sombra de dúvidas, foi a escolha da atriz e cantora Halle Bailey para interpretar Ariel. O público se dividiu. De um lado, o pequeno grupo, do qual eu faço parte, celebrou. Do outro, a maior parte, foi indiferente ou se sentiu decepcionada devido ao fato da sereia não ser completamente semelhante a animação. Apesar da mudança da cor da pele e dos olhos, o famoso cabelo ruivo está presente, assim como a cauda esverdeada e o que seriam as conchinhas lilases também estão.
  
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Eu não usarei essa resenha para falar sobre o machismo de sempre, os inúmeros boicotes, discursos de ódio e racismo que essa decisão do estúdio gerou em parte da audiência. Opto então por dizer que, a meu ver, a Halle entendeu muito o que precisava fazer e se dedicou de corpo, alma e voz.
Se o filme foi um sonho realizado, além de uma conquista profissional imensa para ela, exigiu também muita coragem e uma boa rede de apoio para encarar esse mergulho e voltar inteira à superfície. Para a crítica especializada, Halle foi enaltecida. Considerada, por muitos profissionais da área, a melhor composição de personagem e atuação dentre as versões feitas pelo estúdio.

No geral, o elenco foi a melhor escolha possível. O ator espanhol Javier Bardem sendo Tritão, e o americano Daveed Diggs, que tem um pedacinho genético no Caribe e na Jamaica, dando alma ao Sebastião. A atriz americana Awkwafina, de descendência chinesa e coreana, com sua voz rouca e expressiva está absolutamente brilhante e engraçada como Sabidão. O doce Jacob Tramblay dando voz ao Linguado e a Jéssica Alexander como Vanessa, versão humana da Úrsula, que poderia tranquilamente ganhar indicação de Melhor Atriz Coadjuvante. Os poucos momentos em que ela aparece são muito marcantes. A adorável Melissa McCarty sendo a Úrsula, sofre com uma maquiagem apática mas traz um trabalho vocal surpreendente.
E do lado monárquico em terra, temos a brilhante atriz sul-africana e britânica Noma Dumezweni interpretando a Rainha Selina. O ator britânico-paquistanês Art Malik que interpreta com muita graça e simpatia o conselheiro Grimsby e o Jonah Hauer-King, que interpreta o príncipe Eric, com um olhar naturalmente cheio de ternura, um sorriso doce e um jeito cativante.

Um dos pontos altos dessa versão está justamente no desenvolvimento da relação do príncipe com Ariel. O romance nasce da empatia, das afinidades e tudo acontece de maneira mais natural e despretensiosa.

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A trilha sonora ficou com a dupla Lin-Manuel Miranda (compositor, escritor e diretor, responsável por "In the Heights" e "Hamilton") e Alan Menken (compositor e responsável pela trilha sonora original de 1989 ao lado do Howard Ashman). As canções originais para essa versão foram "Wild Uncharted Waters", "For the First Time", "The Scuttlebutt" e uma reprise de "Part of Your World".

A canção "Wild Uncharted Waters" cantada pelo príncipe Eric, interpretada pelo ator Jonah Hauer-King, é, para mim, a única das composições inéditas que carrega a energia da trilha sonora original de 1989. Notei que uma boa parte do público, especialmente a parte que não gosta do estilo, considerou que a música não contribuiu muito com a história, mas, a meu ver, ela favoreceu o elo entre Eric e Ariel, por firmar uma relação bilateral do romance.
Através de "For the First Time" podemos saber o que se passa no coração de Ariel ao se tornar humana, "The Scuttlebutt" é um ode aos fofoqueiros de plantão, com um apelo maior ao público infantil, e a melancólica reprise de "Part of Your World" teria enchido de orgulho o Hans Christian Andersen, autor do conto original de 1837.

À primeira vista, o figurino desenhado pela Collen Atwood (vencedora de 4 Oscar por Melhor Figurino) e a maquiagem de Peter Swords King (vencedor de 1 Oscar) foram os únicos elementos que ficaram aquém das minhas expectativas. Mas sempre que isso acontece, aproveito para rever meus próprios conceitos. Percebi o tipo de padrão estético que o meu inconsciente apontava como o único e comecei a desconstruí-lo. É importante lembrar que o figurino está além das roupas usadas em terra, também está na exuberante armadura de Tritão e no visual sereia de Ariel.

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De um modo geral, o figurino não esteve dentro do que eu esperava inicialmente, mas não faltou estudo e coerência com a proposta nessa nova versão. Certos detalhes podem até passar despercebidos num primeiro olhar, mas, observando e lendo mais sobre os meios de produção, eu passei a gostar de tudo relacionado a esse trabalho. Sobre a maquiagem, continuo achando que poderia ter sido muito melhor, porém ela não afetou em nada na minha experiência com o filme.

O Color Grading (processo de edição numa pós-produção que trata da imagem quanto a nitidez, brilho, cor e saturação etc.) me agradou muito. As cores estão radiantes, mas não estão tão saturadas ao ponto de parecerem falsas como em alguns outras versões de ação viva produzidas pelo estúdio. A cinematografia está repleta de sequências que parecem pinturas naturalistas, românticas e impressionistas.
Considerando o padrão de qualidade da maioria dos filmes apresentados pelo estúdio recentemente, os efeitos especiais em A Pequena Sereia estão excelentes. Em algumas sequências o único fragmento real em exibição é o rosto das atrizes ou dos atores, então, pelo menos pra mim, essa filmagem híbrida não caiu no vale da estranheza como poderia. Pelo contrário, é surpreendente. E basta observar o cabelo de Ariel, ou para Sebastião, Sabidão e Linguado, para entender o grau de sofisticação que está no mesmo nível da versão mais atual de O Rei Leão, dirigido pelo Barry Jenkins.

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A única ressalva que faço sobre o assunto é o pouco acesso às ferramentas e mídias para que se tenha um melhor aproveitamento visual. Quanto melhor for a tecnologia usada (Streaming, TVs e aparelhos de blu-ray) mais será possível apreciar a qualidade técnica de produções como essa, sobretudo em sequências escuras. No entanto, esses recursos são economicamente inacessíveis para maioria do público em uso doméstico. Por isso, nem todo mundo conseguirá aproveitar essa experiência de forma absoluta.

O resultado nas bilheterias ficou aquém do que o estúdio esperava, mas ainda assim foi melhor do que estava previsto diante de todo o exposto negativo do qual o filme passou. Infelizmente, o adiamento devido a pós-produção só piorou a situação, uma vez que após o lançamento, o filme teve pouco tempo de exibição antes que outros grandes e aguardados filmes fossem lançados, como "Barbie" da Greta Gerwig, que contou com uma das melhores ações de marketing de todos os tempos pela Warner.
Em outro contexto, seria garantido, pelo menos, a indicação ao Globo de Ouro e Oscar 2024 nas categorias de Melhor Canção Original, Melhor Design de Produção, Melhores Efeitos Visuais, Melhor Figurino e Melhor Atriz.


Eu reconheço que uma das coisas que me afastou de qualquer decepção foi por ter acompanhado todas as mudanças feitas para essa nova versão. Tive o tempo e a disposição necessária para me adaptar até a estreia, mas, levando em conta os desafios que toda a equipe enfrentou durante a produção desse filme com a pandemia da COVID-19 interrompendo o processo, mais a adesão aos protocolos de segurança que exigiram maior complexidade nas gravações, o resultado final, a meu ver, foi extraordinário. Se existe atualmente, alguma versão de ação viva digna, que honra o legado de um clássico animado do estúdio, para minha felicidade, é “A Pequena Sereia”.

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